A Democracia no Banco dos Réus: O Voto de Moraes no Caso Rumble
Por Leonardo Corrêa*
O Supremo Tribunal Federal avança para consolidar um precedente preocupante. No plenário virtual, onde os ministros apenas depositam seus votos sem qualquer debate, a decisão do relator Alexandre de Moraes de suspender a plataforma Rumble já conta com a adesão de Flávio Dino e Cristiano Zanin. O julgamento segue até 14 de março, restando ainda os votos de Luiz Fux e Cármen Lúcia.
O caso tem implicações que vão muito além de uma mera disputa entre uma plataforma digital e o Judiciário brasileiro. Ele escancara a crescente tendência de ampliação do poder estatal sobre a esfera da liberdade de expressão e a fragilidade do debate democrático diante da instrumentalização do Direito. Decide-se aqui não apenas o destino da Rumble, mas os limites – ou a ausência deles – para a censura judicial no Brasil, que, a rigor, pelo texto constitucional, não deveria existir.
A democracia brasileira tem sido submetida a um processo peculiar: um Estado que, ao mesmo tempo em que se apresenta como seu guardião, demonstra um apetite insaciável por cerceá-la. Não bastasse o velho desejo de tutelar o debate público, agora se assiste à aplicação expansiva de normas e conceitos vagos para justificar decisões que, se não fossem dramáticas, seriam cômicas.
A suspensão da plataforma Rumble, determinada pelo Ministro Alexandre de Moraes, é um episódio sintomático dessa nova realidade. Para justificar sua decisão, o Ministro afirmou:
“CHRIS PAVLOVSKI confunde LIBERDADE DE EXPRESSÃO com uma inexistente LIBERDADE DE AGRESSÃO, confunde deliberadamente CENSURA com PROIBIÇÃO CONSTITUCIONAL AO DISCURSO DE ÓDIO E DE INCITAÇÃO A ATOS ANTIDEMOCRÁTICOS.”
Parece uma frase categórica, firme, resoluta e inquestionável mas um exame cuidadoso da decisão revela problemas mais profundos. Onde exatamente a Constituição Federal proíbe discursos de ódio? Onde se encontra uma definição jurídica precisa desse conceito? E mais: a interpretação do Marco Civil da Internet, bem como do Código Civil, pode ser feita de maneira tão ampla a ponto de justificar a retirada integral de uma plataforma do ar?
Fernando Schüler, ao comentar, na Veja de ontem, a mais recente edição do Democracy Index publicado pela Economist Intelligence Unit, faz uma observação contundente:
“O Supremo Tribunal Federal passou dos limites”. Desde 2019, ele vem conduzindo “investigações controversas” sobre a “suposta desinformação”. Suspendeu o X durante o debate eleitoral, algo “sem precedentes em países democráticos”. E criminalizou a opinião “com base em definições vagas, em um exemplo de politização do Judiciário”. Tudo isso, conclui o relatório, “tem um efeito inibidor sobre a liberdade de expressão”, criando “precedentes para os tribunais censurarem a opinião política”.
É aqui que a decisão contra a Rumble se insere. Se há algo em comum nos casos citados pelo relatório, é a ideia de que, sob o pretexto de proteger a democracia, o Judiciário vem assumindo uma postura cada vez mais ativa na regulação do discurso público. Mas a ironia é evidente: pode uma democracia se proteger restringindo o livre fluxo de ideias?
O Ministro Moraes fundamenta sua decisão, em parte, no Marco Civil da Internet. O artigo 19 dessa lei estabelece um critério claro para a responsabilização de plataformas por conteúdos de terceiros:
“O provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente.”
A redação da norma é cuidadosa. Ela foi concebida para evitar a responsabilização automática de plataformas por postagens de usuários e, ao mesmo tempo, impedir que decisões judiciais sirvam como instrumentos de censura prévia. No entanto, a decisão de Moraes não se limita a exigir a remoção de conteúdos específicos, mas parte para a suspensão integral da Rumble no Brasil. Eis a dissonância: uma lei criada para garantir a liberdade na internet é invocada para justificar uma decisão que atenta contra essa mesma liberdade.
Além disso, vale considerar que a exigência de um representante legal no Brasil – aludida na decisão do Ministro – reforça essa distorção. O Código Civil, ao tratar desse requisito, partia da premissa de empresas com operações materiais, contratos firmados em território nacional e estrutura organizacional reconhecível. Sua lógica sempre foi aplicada a sociedades estrangeiras que desejavam estabelecer filiais no Brasil, contratar funcionários e operar ativamente no mercado nacional. Mas a extensão desse conceito para plataformas digitais, cujo vínculo com o Brasil se dá unicamente pela oferta de serviço na internet, não é automática.
Se essa interpretação for válida, devemos perguntar: todos os jornais internacionais, que acessamos pela internet, têm representantes legais no Brasil? Todas as emissoras de rádio do mundo, que chegam até nós pelas ondas digitais, têm representantes legais no Brasil? Se a resposta for negativa – como de fato é –, por que a Rumble deveria ser tratada de maneira diferente?
O erro do STF não está apenas no conteúdo de suas decisões, mas na forma como tem reinterpretado a Constituição. A base da interpretação constitucional deve ser os direitos fundamentais negativos do artigo 5º, ou seja, aqueles que garantem a vida, a liberdade e a propriedade ao limitar a interferência do Estado sobre o indivíduo. Esses direitos são cláusulas pétreas protegidas pelo artigo 60, o que significa que não podem ser abolidos nem relativizados. Já os direitos fundamentais positivos, também previstos no artigo 5º, exigem uma atuação ativa do Estado – por exemplo, o direito à educação ou à assistência jurídica gratuita. No entanto, o STF tem adotado uma abordagem que inverte essa hierarquia, interpretando direitos positivos como se tivessem primazia sobre os negativos. Essa inversão é um erro lógico, pois um direito positivo não pode ser garantido à custa da supressão de um direito negativo. A Constituição protege ambos, mas qualquer interpretação deve partir do reconhecimento de que a liberdade individual e a proteção contra o arbítrio estatal são a base sobre a qual todos os outros direitos se sustentam.
A decisão do STF contra a Rumble não viola apenas um princípio fundamental; ela compromete a própria estrutura constitucional brasileira. Para compreender a gravidade desse problema, vale lembrar um ponto crucial levantado por Randy Barnett – ainda que sua reflexão seja sobre a Constituição americana, o princípio que ele enuncia nos ajuda a entender melhor a nossa própria. Segundo Barnett, a Constituição “é a lei que governa aqueles que nos governam”. Ela não é um contrato entre cidadãos e o Estado, pois nós, como indivíduos, nunca a assinamos nem consentimos expressamente com seu conteúdo. No entanto, aqueles que exercem cargos públicos juraram defendê-la. Esse juramento não lhes confere o direito de reinterpretá-la conforme suas conveniências políticas. Pelo contrário: os vincula ao sentido original de suas palavras, garantindo que seu compromisso seja com a Constituição tal como promulgada, e não com uma versão moldada a seus interesses momentâneos.
O Brasil não está vivendo uma ruptura explícita nem um regime de exceção declarado. Não há tanques nas ruas, mas há algo talvez mais preocupante: a reinterpretação arbitrária da Constituição por aqueles que juraram defendê-la. A liberdade não precisa ser eliminada de uma vez para ser enfraquecida. Ela pode se esvair pouco a pouco, decisão após decisão, até que o que antes era impensável se torne normal, e o que antes era normal se torne proibido.
A Suprema Corte ainda pode referendar ou revisar a decisão contra a Rumble. Mas, se o fizer, estará ignorando a Constituição como limite do poder estatal e transformando-a em um instrumento de controle do discurso. E uma democracia que depende de permissões para existir não é democracia. É apenas um ensaio sobre sua própria ruína.
*Leonardo Corrêa – Advogado, LL.M pela University of Pennsylvania, Sócio de 3C LAW | Corrêa & Conforti Advogados, um dos Fundadores e Presidente da Lexum
Nota do Editor: A Lexum não adota posições específicas sobre questões jurídicas ou de políticas públicas. Qualquer opinião expressa é de responsabilidade exclusiva do autor. Estamos abertos a receber respostas e debates sobre as opiniões aqui apresentadas.
O erro e sobre a definicao de democracia. Ela é limite ao poder. Por isso se a CF fala que o poder deve proteger a liberdade, esta equivocada. O Poder atenta contra a liberdade nao pode ser o defensor dela
Seminal.
A pergunta é:
Ação e reação?
Qual?
A inércia não é a opção.