Congresso acertou no caso do IOF
Por Leonardo Augusto Andrade*
O decreto legislativo aprovado por larga maioria pelo Congresso Nacional para revogar o Decreto presidencial que promovia o aumento do IOF sobre diversas operações seguiu à risca o figurino constitucional do imposto de competência da União, que somente pode ser aumentado pelo Poder Executivo com efeitos imediatos quando utilizado como instrumento de regulação econômica.
Inicialmente, porém, é importante esclarecer que todo tributo apresenta uma função arrecadatória – pois gera recursos para o Estado – e extrafiscal – pois interfere no comportamento das pessoas envolvidas nas situações que constituem a sua hipótese de incidência.
O que diferencia aqueles tributos conhecidos por regulatórios dos arrecadatórios, portanto, é a preponderância de uma ou outra função, e não a sua exclusividade.
Outro fato bastante importante é que a Constituição Federal, além de prescrever as competências tributárias da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal, dedicou uma Seção às “Limitações do Poder de Tributar”, cujo objetivo é proteger determinados direitos fundamentais dos cidadãos da atuação do Estado em matéria tributária.
Entre os limites mais importantes, estão a legalidade e a anterioridade. A primeira visa a prevenir uma das maiores fontes de revoltas e revoluções ligadas à cobrança de tributos, a sua exigência à revelia da aprovação popular por meio de seus representantes eleitos. Assim, o cidadão tem o direito de não se submeter à cobrança de um tributo cuja criação ou aumento não tenha derivado de lei aprovada pelo parlamento, onde se encontram todas as correntes políticas eleitas no processo democrático.
A anterioridade, por outro lado, deriva da segurança jurídica, que permeia todos os direitos e garantias das Constituições modernas. Isso porque, considerando que os tributos interferem na liberdade e no patrimônio das pessoas, dois direitos fundamentais que constituem cláusulas pétreas da Constituição, não é lícito que a sua criação ou aumento tenha efeitos imediatos, sendo necessário um prazo mínimo entre a publicação da lei e a sua entrada em vigor.
Em regra, a anterioridade é anual, ou seja, para ser cobrado o tributo precisa ter sido criado ou aumentado no ano anterior, havendo ainda – com algumas exceções – de respeitar o prazo mínimo de 90 dias entre a publicação da lei e a sua entrada em vigor. Alguns tributos, como as contribuições sociais destinadas à Seguridade Social, possuem a chamada anterioridade mitigada, podendo ser cobradas no mesmo exercício de sua criação ou aumento, desde que respeitado o prazo mínimo de 90 dias.
Por representarem cláusulas pétreas, essas limitações ao poder tributário não podem ser abolidas sequer por emendas constitucionais, havendo exemplos de declaração de inconstitucionalidade pelo STF nesse sentido.
Porém, determinados tributos podem ser aumentados por decreto presidencial. É o caso dos impostos sobre a importação, a exportação, produtos industrializados e operações de crédito, câmbio, seguro e com títulos e valores mobiliários – popularmente conhecido por IOF. Além disso, esses impostos não precisam observar a anterioridade para que os aumentos entrem em vigor.
Essa exoneração de respeitar os direitos fundamentais dos cidadãos, porém, não é absoluta, mas vinculada ao objetivo de complementar a competência atribuída à União de regular as atividades econômicas sobre as quais os impostos em questão incidem, preponderando, portanto, a função extrafiscal (indutora de comportamentos) sobre a arrecadação tributária.
Desde a sua criação nos anos 1960 até os dias de hoje, o IOF possui função preponderantemente de regulação das operações sobre as quais incide, não por acaso sobre a qual compete exclusivamente à União legislar, conforme prevê o artigo 22, inciso VII, da Constituição Federal.
Assim, ao lado de outros instrumentos legais, a manipulação do IOF como elemento indutor de comportamentos nas áreas sensíveis à economia como câmbio, crédito e operações no mercado de capitais representa uma das ferramentas importantes colocadas à disposição da União para cumprir as suas funções constitucionais. Por exemplo, diante da necessidade de controle da desvalorização da moeda local, o Poder Executivo poderá aumentar o IOF sobre a compra de moedas estrangeiras e reduzir a alíquota para a compra de moeda local. Em se tratando de medidas que exigem ação imediata, não faria sentido que a União tivesse que passar por um lento processo legislativo ou aguardar o período de anterioridade para que elas entrassem em vigor, quando, provavelmente, seriam pouco eficazes para remediar a situação.
Assim, sob condições estritas, a Constituição coloca o interesse público representado pelas políticas econômicas confiadas à União acima dos direitos individuais à legalidade e anterioridade tributária, no caso das operações sujeitas ao IOF. Essas prerrogativas, portanto, só existem quando atreladas às finalidades regulatórias do imposto, não podendo ser manipuladas para atingir objetivos arrecadatórios, para os quais o respeito aos direitos fundamentais dos cidadãos é inegociável.
Nesse contexto, é inegável que o recente aumento das alíquotas do IOF por decreto presidencial – e até mesmo a inconstitucional criação de uma nova hipótese de incidência sobre o risco sacado – representou um desvio de sua finalidade regulatória para, nas palavras dos seus formuladores, promover o ajuste fiscal do Governo Federal. Por isso, tratou-se de uso indevido de um decreto presidencial para invadir a competência exclusiva do Poder Legislativo para aumentar impostos com fins arrecadatórios.
Ocorrida a exorbitância regulamentar do Poder Executivo, compete ao Poder Legislativo sustar o ato normativo correspondente (CF, art. 49, V), exatamente o que foi feito por meio do Decreto Legislativo nº 176/2025, aprovado por larga maioria.
Descontentes com a decisão parlamentar, contudo, um partido da base aliada do Governo Federal e a Advocacia-Geral da União ingressaram com ações diretas no Supremo Tribunal Federal buscando restabelecer os efeitos do decreto presidencial sustado.
O que se evidencia da atitude do partido político em questão e da AGU é uma dupla tentativa de burlar o princípio da separação de poderes: primeiro tentando restabelecer um decreto presidencial inconstitucional por invasão de competência legislativa; e agora tentando fazer com que o STF invalide um ato de competência exclusiva do Congresso Nacional (DLG 176/2025).
Ocorre que a separação de poderes é essencial para o funcionamento da democracia, não cabendo ao presidente da república nem ao Poder Judiciário invadir a competência do Poder Legislativo para tentar fazer valer um decreto legitimamente sustado pelo Congresso Nacional.
Em vez de litigar, o Poder Executivo e a sua base de apoio deveriam negociar com o Congresso Nacional e, indiretamente, com a sociedade para, dentro das regras do jogo, aprovar aumentos de impostos considerados necessários.
Além disso, subjacente à invasão das prerrogativas do Poder Legislativo está o desrespeito a direitos fundamentais dos cidadãos brasileiros, sendo conveniente lembrar que o Estado existe para proteger esses direitos, e não para desrespeitá-los. Seja quais forem os motivos que levaram o Congresso a sustar o decreto presidencial, a medida acertou na forma e no conteúdo, não sendo passível de revisão judicial.
Leonardo Augusto Andrade – Advogado, mestre em Direito pela PUC-SP e membro da Lexum.
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