O Juiz “doninha”
Por Leonardo Corrêa e Cristiano Carvalho*
“O que sempre fez do Estado um verdadeiro inferno foram justamente as tentativas de torná-lo um paraíso” Friederich Hölderin
Friedrich Hayek, economista, jurista e filósofo austríaco, Prêmio Nobel de Economia (1974), dedicou um volume inteiro de sua trilogia clássica, Law, Legislation and Liberty, ao que chamou de “a miragem da justiça social” e repete o tema em um capítulo de outra obra famosa, The Fatal Conceit. Nesta última, em determinada passagem da obra, Hayek alude a expressão “weasel word” (palavra doninha) como uma característica do adjetivo “social”, quando anexado a qualquer palavra que seja. Para quem não sabe, a doninha é um animal encontrado no hemisfério norte, que é furtivo e astuto. Reza a lenda que, ao invadir um galinheiro, é capaz de sugar todo o recheio de um ovo, fazendo um buraquinho nele, e deixando a sua casca e aparência intactos. É uma metáfora para o efeito que o adjetivo “social” acarreta aos substantivos em que é empregado, tais como “justiça social”, “função social”, “direitos sociais” e tantos outros, esvaziando o conteúdo semântico original daquelas palavras, e tornando-as vagas, quando não redundantes. O dano, porém, é permitir que o conteúdo semântico original, preciso, torne-se algo maleável de ser preenchido com virtualmente qualquer coisa, e, frequentemente, com conteúdo ideológico justificador das mais variadas intervenções do Estado.
O conceito original de “justiça” é paradigmático, e mesmo vago, o termo remete a uma forma de trazer equilíbrio entre os indivíduos eventualmente em conflito, e para a sociedade. É a função clássica de um juiz, desde os idos tempos: decidir quem tem direitos ou deveres em determinada situação de litígio, o que serve para dirimir aquele conflito em particular, mas também acarretar paz social, sinalizando a todos os demais qual a posição do Direito naquele tema específico. Isso é uma forma procedimental de trazer segurança e previsibilidade na busca pelo valor Justiça.
Flávio Dino, agora togado, decidiu presentear os calouros de Direito da PUC-SP com uma aula magna sobre “Constitucionalismo Social”. Esse conceito, sob o verniz da garantia de direitos, tem servido como pretexto para a expansão ilimitada do poder judicial. Segundo a matéria do Conjur, Dino dissertou sobre sua visão de STF, direitos trabalhistas, regulação de redes sociais e outros temas que, pela lógica da separação de poderes, pertencem ao Legislativo, mas que ele considera parte do escopo de atuação da Suprema Corte.
A abordagem do ministro parte de uma premissa equivocada: o STF não é um engenheiro social, mas um guardião da Constituição. Seu argumento de que “direitos não são um estorvo, mas sinais de desenvolvimento” é uma falácia retórica. A questão essencial não é se direitos são desejáveis, mas sim quem deve defini-los e qual é o limite da atuação do STF. No Constitucionalismo Republicano da Lexum, a resposta é clara: é o povo, por meio de seus representantes eleitos, quem detém essa prerrogativa, e não um tribunal de 11 ministros nomeados pelo Executivo.
Dino apresenta sua visão como uma inevitabilidade histórica. Ele questiona: “O Supremo pode deixar de se debruçar sobre isso?” A resposta é simples: pode e deve! Políticas públicas são responsabilidade do Legislativo e do Executivo. O Supremo deve se limitar a dizer o que a Constituição permite, e não criar normas baseadas em concepções subjetivas de “justiça social”.
Um exemplo gritante de sua abordagem errônea é a questão da precarização do trabalho. Dino afirma que a desregulamentação impede as pessoas de se aposentarem, criando um problema previdenciário. Para ele, a solução estaria no STF. Mas desde quando um tribunal constitucional se tornou um gestor da Seguridade Social? O Brasil tem um Legislativo eleito democraticamente para lidar com essas questões. O Supremo não pode se transformar em uma instância de revisão universal das políticas econômicas do país.
Dino também tenta relativizar a dicotomia entre ativismo e autocontenção, sugerindo que a neutralidade do STF seria uma escolha política tão arbitrária quanto o ativismo. Para sustentar essa tese, ele recorre ao caso da deportação de Olga Benário, ignorando que a decisão não envolvia uma questão de ativismo judicial, mas sim a submissão do Judiciário a um governo autoritário que concentrava poderes no Executivo. O apelo é puramente emocional: um episódio trágico é utilizado de forma anacrônica para justificar a expansão do STF como um agente de transformação social, sem considerar os riscos institucionais dessa postura.
A falha histórica mais grave ocorre quando Dino tenta encaixar o ativismo judicial como uma tradição americana, citando o caso Dred Scott v. Sandford (1857). Ele sugere que a Suprema Corte dos EUA negou direitos a escravizados por meio do ativismo judicial. Ocorre que Dred Scott não foi um caso de ativismo, mas sim uma decisão baseada na interpretação textual da Constituição americana à época. Pensadores como Lysander Spooner argumentaram que, lida corretamente, a Constituição dos EUA jamais autorizou a escravidão. O verdadeiro problema foi a distorção dos princípios de direito natural, algo que o próprio Dino defende ao promover uma visão elástica da Constituição.
Por fim, Dino justifica a interferência do STF na regulação das redes sociais alegando que o tribunal apenas “responde a demandas”. No entanto, o papel do STF não é atender a qualquer demanda, mas apenas aquelas que se enquadram nos limites de sua competência constitucional. A função do tribunal é determinar se uma norma está de acordo com a Constituição, e não legislar sobre temas políticos e regulatórios. Se realmente apenas respondesse a demandas, não veríamos ministros adotando posturas proativas e expandindo sua atuação para além do controle de constitucionalidade. Na realidade, a Corte tem assumido uma posição política travestida de neutralidade técnica, interferindo indevidamente em temas que devem ser tratados pelo Congresso Nacional.
O que Dino defende, na realidade, é um Supremo que se movimenta conforme sua própria noção de progresso, sem os freios da separação de poderes. Seu “constitucionalismo social” é um eufemismo para a expansão do ativismo judicial. Mas qual deve ser o papel adequado do STF?
Na Lexum, defendemos três princípios fundamentais:
O Estado existe para preservar a liberdade;
A separação de poderes é essencial para a nossa Constituição Federal;
A função do Judiciário é dizer o que a lei é, não o que ela deveria ser.
Se o Supremo respeitasse tais princípios, discussões como essas sequer existiriam.
Como bem descreveu Roberto Campos, a Constituição Brasileira é “uma mistura de dicionário de utopias e regulamentação minuciosa do efêmero”. O problema é que, ao incluir questões fora de seu escopo – governar aqueles que nos governam –, deu-se margem para a gestação de um ambiente jurídico instável, onde o método interpretativo, nos termos da própria Constituição, se perdeu.
Nesse contexto, a solução está em retomar uma abordagem textualista, que assegure que a Constituição seja aplicada conforme seu significado original. Nessa linha, é crucial a distinção entre direitos fundamentais negativos e direitos programáticos. Antes de tudo é essencial respeitar: a liberdade, a propriedade e a vida. Só com base nas obrigações negativas – com relação a esses direitos – que é possível interpretar o resto da Constituição. Inverter essa lógica, além de violar o texto da constituição, gera um relativismo jurídico perigoso.
O Brasil precisa de um Judiciário comprometido com a Constituição, não com projetos ideológicos disfarçados com a miragem da “justiça social”, como diria Hayek. Infelizmente, Flavio Dino aparenta ser um juiz “doninha”.
*Leonardo Corrêa – Advogado, LL.M pela University of Pennsylvania, Sócio de 3C LAW | Corrêa & Conforti Advogados, um dos Fundadores e Presidente da Lexum
*Cristiano Carvalho – Advogado, Livre-Docente em Direito (USP), Mestre e Doutor em Direito (PUC-SP) e Pós-Doutor em Direito e Economia (Berkeley), um dos fundadores da Lexum.
Nota do Editor: A Lexum não adota posições específicas sobre questões jurídicas ou de políticas públicas. Qualquer opinião expressa é de responsabilidade exclusiva do autor. Estamos abertos a receber respostas e debates sobre as opiniões aqui apresentadas.